Difícil imaginar um campista ou mesmo um residente na cidade que não tenha ouvido algum comentário depreciativo sobre os habitantes desta planície. Há insultos de diversas modalidades que enfatizam aspectos de nossas tradições socioeconômicas e até mesmo acusações difusas e aleatórias sobre a honestidade de nossa gente. Não acredito que estas manifestações sejam apenas expressões do bom humor e da gaiatice típica do brasileiro. Um exame nada sistemático e muito menos exaustivo de algumas obras da cultura nacional nos coloca diante de incômodas referências que perpassam o século XX e nos alcançam nos dias atuais. Citemos três:
Em 1925 Manuel Bandeira já escrevia em seu poema “Não sei dançar”os seguintes versos:
“A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral...
Surge Campos representada por uma elite preconceituosa e arrogante incapaz de entender o Brasil, de pensá-lo e aceitá-lo como uma nação que é formada por seu povo. Segundo Raimundo Faoro é uma elite que vê as camadas populares como um vulcão que deve permanecer eternamente adormecido, a mesma elite que sempre quis ser francesa, inglesa ou norte-americana e que sempre rechaçou a arte e as manifestações populares, quando não reprimindo, articulando sua circunscrição aos subúrbios.
No livro FEBEAPÁ 1 – Festival de besteira que assola o país de 1966, Stanislaw Ponte Preta relata o julgamento simulado de Hitler que teria ocorrido na Faculdade de Direito de Campos no qual o líder alemão acaba absolvido. Novamente Campos é citada como exemplo de reacionarismo e irracionalismo.
Mais recentemente, o filme Bezerra de Menezes, que conta a história do médico dos pobres, exibe em uma determinada cena o discurso do doutor em favor da abolição da escravidão. Intempestivamente suas palavras são interrompidas por uma voz irascível que afirma:
- Em Campos não, em Campos não...
Mais do mesmo, desta vez a cidade é a terra que perpetuou tudo que sempre houve de mais atrasado no Brasil, a terra dos vícios, dos reacionários, do retrocesso, das práticas anti-republicanas e berço mais tranqüilo dos conservadores que teimam em frear a modernização se agarram ao passado e pretendem usar sua força para preservar privilégios.
Não se pretende aqui avaliar as acusações ou mesmo pensar em eventuais defesas. É certo que uma cidade é mais que sua “elite” e que podemos buscar no passado e no presente exemplos de personagens e episódios que se contrapõem a essas imagens estereotipadas que apresentamos. Preocupa-nos mais o impacto sobre a construção das identidades coletivas, pensemos como estas visões negativas da cidade podem ter afetado e estar afetando a nossa autoimagem, lembremos que os recentes escândalos políticos só serviram para reforçar aspectos negativos que se vinculam a nossa memória coletiva. Segundo o sociólogo austríaco Michael Pollak a memória coletiva, social e individualmente construída, é um dos alicerces de nossas identidades. Ou seja, a imagem que fazemos de nós, para nós e para os outros.
Há muito que pesquisar sobre este tema, persistem perguntas sem respostas que reivindicam estudos e reflexões. Afinal, existe uma identidade campista? Como ela se apresenta para os distintos grupos sociais que integram a cidade? Quais os discursos produzidos pelo poder público e pelos intelectuais com o propósito de construir nossa identidade? Nossa proposição é correta? Existe mesmo um complexo de inferioridade provinciano que se hospeda muitas vezes no silêncio diante das provocações de outros citadinos? Precisamos enfrentar o espelho e superar o medo descrito assim pelo escritor argentino Jorge Luís Borges: “Uma de minhas insistentes súplicas a Deus e ao meu anjo da guarda era não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietação. Algumas vezes, receei que começassem a divergir da realidade; outras, ver meu rosto neles desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo.”
10 comentários:
Muito interessante o texto! Parabéns!
Simplesmente,Perfeito!!!Parabéns!
Valeu Mestre Renato!
"Campista, nem fiado, nem a vista". Quem nunca ouviu esse jargão?
Outro: "Campos cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz".
É terrível! Parabéns pelo post.
Fábio, lendo essa maravilhosa reflexão não posso deixar de pensar em como é difícil imaginar o jornal, a revista, como repositórios dos grandes textos, dos debates necessárias à imprensa. Viva os blogs e os blogueiros!
Renato, meu querido, que bom lê-lo e refleti-lo.
Dizem que onde há fumaça, há fogo. Os esteriótipos existentes - do bem ou não - são frutos de uma construção social "perversamente" mestiça, isto é, nós, da região, os misturados ao longo desse processo, e quase brancos precisávamos nos desvincular daquilo que representasse a inferioridade.
Assim, surgiram aqueles que se contrapunham a ignorância dos quase brancos da região: entre eles José do Patrocíncio - um indicio de evolução, quase negro ou quase gente e totalmente brasileiro na terra da hipocrisia.
Sem contar...com Nilo P. Nina...e etc...
Obrigados a todos pelos comentários, Humberto meu camarada, concordo plenamente, o “corte de cor” foi uma marca desta cidade que homenageia o Barão de Cotegipe e esquece de Wilson Batista.
aí não Renato...Wilson Batista foi um escroque que percorria a Lapa para, junto com sua turma, dar curras em mulheres...
Quem disse isso não foi eu, foi o Mário Lago em sua entrevista a revista Bundas...
Bom xacal,
Este moderador não vai censurar sua "denúncia" histórica, mas...
O grande Mario Lago não está mais entre nós para ratificar suas memórias sobre o famoso campista que, independente de seus eventuais desvios de conduta, era inegavelmente um compositor de talento.
Caro Xacal, tive a oportunidade de ler duas biografias de Wilson Batista: a de Luiz Pimentel e Luís Fernando Viera editado pela Relume Dumará na série perfis do Rio e Wilson Batista e sua época de Bruno Ferreira Gomes editada pela Funarte/MEC. Em nenhuma das duas se encontra qualquer acusação com essa gravidade.
Devo lembrá-lo que Mário Lago era desafeto declarado de Wilson Martins, veja o que diz o livro de Luiz Pimentel e Luís F. Vieira: “Às vezes freqüentava os mesmos lugares, mas é certo que não se sentava às mesas de Mário Lago, Ari Barroso ou Herivelto Martins.”(pág. 27).
Independente de qualquer juízo o fato é que estamos falando de um dos maiores músicos do Brasil, veja o que disse Cristina Buarque: “Wilson Batista é um dos maiores compositores de samba de todos os tempos. Paulinho da Viloa e João Gilberto também dizem isso. É uma injustiça que um sambista, tão atual ainda hoje, seja pouco conhecido.”
Um abraço
Postar um comentário