quarta-feira, 2 de setembro de 2009

OBAMA E O SUS

Em seu primeiro discurso ao Congresso americano, o presidente Barack Obama explicitou os principais pontos da futura gestão, com destaque para os investimentos na estruturação da área de saúde. No dia 15 de julho, o presidente obteve seu primeiro avanço: a Comissão de Saúde e Educação do Senado aprovou um projeto de reforma que cria uma empresa de seguro-saúde estatal, com o objetivo principal de gerar maior competição no setor e forçar as empresas privadas a reduzirem seus preços. Apesar do caráter inovador da proposta, para a aprovação final, o principal ponto polêmico deverá ser o estabelecimento de um imposto de 1% sobre a renda dos muito ricos, de forma a financiar a universalização do sistema de saúde americano nos próximos anos.
O empenho do governo em aprovar o Obamacare, como vem sendo ironicamente denominado pela oposição, é fácil de compreender. Atualmente, existem cerca de 46 milhões de cidadãos americanos sem qualquer tipo de acesso a serviços de saúde e outros 250 milhões cobertos por um mecanismo de seguro caro, ineficiente e injusto. Entre outras características, funciona às custas da seleção de risco dos segurados, de limitação de cobertura, de restrição de pagamento aos prestadores e da divisão de custos com os pacientes. Trata-se de um sistema fragmentado, com imensa dificuldade de ordenação de procedimentos e, entre as diversas consequências negativas, destaca-se a vulnerabilidade às estratégias mercantilistas e a falta de vocação para iniciativas de prevenção de doenças e de promoção da saúde. Todo esse quadro se reveste ainda de maior relevância por se tratar de um país que investe 16% de toda a sua riqueza nessa área e que, em sete anos, se nada for feito, alcançará os 20%.
Sem qualquer dúvida, em todo o mundo a escalada dos custos na área da saúde é um dos grandes desafios para a gestão pública. Tal fato tem muito a ver com o envelhecimento da população, o progresso técnico-científico e o cuidado insuficiente ou inadequado com aspectos como dieta saudável, controle do tabagismo e prática regular de exercícios físicos. No entanto, não há como deixar sem menção a intensa atividade de marketing e cooptação de pessoas físicas e jurídicas para a incorporação acrítica de procedimentos médicos desprovidos de qualquer sustentação científica. Longe da banalidade dos discursos panfletários e ideológicos, uma farta literatura internacional atesta, por exemplo, que a iniciativa mais adequada ao enfrentamento dessa questão é a organização de um sistema universal, com gestão governamental, embasado em uma extensa e qualificada rede de atenção aos problemas de saúde mais frequentes da população. A organização de um tal contexto não é garantia preliminar de êxito instantâneo, mas a existência de um tal sistema – isto é, um grande mercado consumidor regido pela lógica do interesse público – oferece, por exemplo, as condições necessárias para a implantação de políticas de saúde racionais, custo-efetivas, amparadas em estudos de avaliação tecnológica.
Essa discussão conduz ao exame do nosso Sistema Único de Saúde e à constatação de que o Brasil dispõe de um modelo de atenção à saúde conceitualmente correto, necessitando de ajustes operacionais, de um modelo de gestão moderno e, sobretudo, de uma política de financiamento compatível com suas pretensões e com as dimensões da atividade econômica em curso no país. Previamente à definição dos mecanismos a serem acionados, é hora de a sociedade brasileira, suas lideranças e seus representantes definirem que percentual da riqueza aqui produzida deve ser destinado ao pagamento de ações e serviços do SUS.
Na elaboração da Constituição de 1988, fizemos a opção correta quanto à estruturação de um sistema com acesso universal, mas são evidentes as contradições da situação brasileira frente a países que se organizaram da mesma maneira. Por exemplo: o Brasil é o único desse grupo em que o gasto público é inferior ao privado (cerca de 3,5% e 4% do PIB, respectivamente) e no qual um percentual significativo da população não usa o sistema ou só o faz seletivamente. Segundo dados da OMS, o Brasil gasta cerca de três vezes menos do que a média mundial, ocupando a 35ª posição deste ranking. Assim, se é indispensável exigir um aperfeiçoamento na eficiência e no controle dos gastos, este aspecto não pode encobrir ou minimizar a gravidade do subfinanciamento e a justificada insatisfação dos gestores e prestadores de serviço do SUS quanto à insuficiência dos recursos.
A decisão do presidente Barack Obama de se dedicar a um tema que, há longa data, aflige a sociedade americana e ocupa a pauta de sucessivos planejadores sem nenhum resultado prático, talvez tenha o mérito adicional de lançar um novo alerta sobre o problema. Os parlamentares brasileiros estão trabalhando na regulamentação da Emenda Constitucional 29, que permite a clara definição dos gastos em saúde, para demonstrar o elevado senso de responsabilidade com o SUS, um grande patrimônio coletivo que, duramente, temos construído e cuja sustentabilidade e aperfeiçoamento precisamos garantir.


Chico D'Angelo é Deputado federal (PT-RJ).

Artigo publicado na edição de hoje do Jornal do Brasil.

3 comentários:

Gustavo Carvalho disse...

Artigo esclarecedor do deputado Chico D'ângelo. Contudo, uma das maiores aberrações da vida pública brasileira é o não cumprimento das leis. No que tange à sustentabilidade financeira do SUS não podemos esquecer a Lei nº 9.656/98 (art. 32) que trata do Ressarcimento ao SUS por parte das prestadoras de planos de saúde privados. Portanto, a cada serviço prestado pelo SUS para um cliente de plano de saúde, esse plano deveria ressarcir o sistema público. Ou seja, nada mais justo. Mas o mais incrível é que esta lei, que repara a grande injustiça, não possui regulamentação e subsiste no limbo da nossa vida pública. Com a palavra legisladores e gestores ...

Anônimo disse...

o SUS é o que tem de mais perverso em relação aos municípios, principalmente os municípios menores. o Governo Federal gasta quase nada e quem paga o pato é o município.

FÁBIO SIQUEIRA disse...

A minha impressão é diametralmente oposta a do(a) comentarista anônimo(a). O SUS garante vultosos investimentos na saúde. A corrupção e a má gestão nos Estados e Municípios é que é responsável pelo mau atendimento à população.
Seria o caso de "federalizar" a saúde pública?